Imbróglio do ajuste fiscal promete novas rodadas de polêmicas para gestão de Lula
Ao insistir no aumento de impostos e ignorar o corte de gastos, o governo frustra as expectativas de promoção das reformas estruturais tão necessárias

No encontro com líderes do Congresso realizado na noite de domingo, 8, para discutir as medidas necessárias para reverter a deterioração das contas públicas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs o que chamou de “pacto pelo equilíbrio fiscal do Brasil”. O acordo seria sustentado por três pilares, sendo o primeiro deles a revisão do Decreto nº 12.466. Assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no fim de maio, o texto aumentou o imposto sobre operações financeiras (IOF) e provocou uma forte e justa oposição de parlamentares, empresas e mercado financeiro. O segundo ponto de sustentação seria a aprovação de uma medida provisória elevando outros tributos para compensar as perdas com a revisão do IOF. Para arrematar, o pacto envolveria um corte de incentivos fiscais. Ao término da reunião, de quase cinco horas, a frustração dos presentes era visível. Haddad pouco tocou no que deveria ser o tema principal da conversa: as medidas estruturais solicitadas pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), anfitrião do encontro. Sem elas, a boa vontade dos parlamentares com o governo minguou. “O clima no Congresso em relação às propostas é muito ruim”, afirmou a VEJA o deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ), que participou da reunião e é o responsável pelo grupo de trabalho da reforma istrativa na Câmara. “Só vemos aumento de tributos, sem ajuste de despesas.”
Insatisfeitos com a posição de Haddad, os congressistas partiram para o ataque. Na terça-feira 10, uma coalizão representando 469 deputados e 79 senadores emitiu uma nota rechaçando qualquer plano para taxar mais empresas e cidadãos. No dia seguinte, a federação formada por União Brasil e Partido Progressistas, com quatro ministérios na Esplanada, também se posicionou contra novos encargos. “Ninguém aceita mais a pauta do aumento de impostos”, diz o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), que foi o relator do arcabouço fiscal na Câmara. Tamanha mobilização do Parlamento pretendia pressionar Lula e a equipe econômica a promoverem um ajuste fiscal baseado em corte de gastos, para cumprir as metas fiscais de curto prazo, e em reformas estruturais para estancar, no longo prazo, o crescimento das despesas e reverter a trajetória da dívida pública, que disparou após o retorno do PT ao poder. Em nova demonstração de chance desperdiçada para um debate de alto nível sobre um assunto crucial, o governo resolveu tentar o método de persuasão mais simples e direto: o de acelerar a liberação de emendas parlamentares para conter a revolta no Congresso.

O imbróglio do ajuste fiscal promete render novas rodadas de polêmicas. A Medida Provisória nº 1.303 e o Decreto nº 12.499, publicados em uma edição extra do Diário Oficial da União na noite de quarta-feira, 11, irritaram ainda o Legislativo ao confirmar que, mais uma vez, Lula insiste em mirar no alvo errado — o bolso dos brasileiros — para cobrir o déficit. Sob o pretexto de corrigir distorções, a MP e o decreto elevam, na prática, a carga tributária. Os títulos de investimento incentivados, antes isentos, pagarão 5% de IR. A medida atinge importantes instrumentos de financiamento da construção civil, como as Letras de Crédito Imobiliário, e da agricultura, como os Certificados de Recebíveis do Agronegócio. O imposto sobre as bets subirá de 12% para 18% da receita. A alíquota de 9% da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido cobrada das fintechs foi extinta, e as instituições am a pagar 15%, como os bancos. O mesmo esmero do Planalto em ampliar receitas não foi visto no corte de gastos. A MP contém medidas genéricas para endurecer o o a alguns benefícios, como o seguro-defeso, pago aos pescadores, e o auxílio a quem se afasta por um tempo do trabalho por motivos de saúde.
Para complicar ainda mais a tarefa de Haddad, o plano do governo deve causar mais barulho do que resultados. A corretora Warren Rena estima que o novo pacote gerará 30 bilhões de reais em 2026. A cifra já seria insuficiente para cobrir o déficit de 52 bilhões de reais previsto para este ano. Mas o cenário do ano que vem é ainda pior. “Mesmo se essas medidas forem adiante, seria preciso bloquear 50 bilhões no ano que vem para cumprir a meta”, estima o economista Felipe Salto, da Warren Rena. “Mas o Orçamento já estará engessado demais para permitir isso.” A razão é que os gastos obrigatórios, tais como o pagamento de aposentadorias e o Benefício de Prestação Continuada, representarão 92% do total de despesas em 2026.

Restarão apenas 8% do Orçamento para os gastos discricionários — a margem de manobra à disposição do governo —, que envolvem de investimentos em obras a manutenção de prédios públicos. Mesmo a destinação desses recursos está cada vez mais rígida. Ao enviar o projeto de Orçamento de 2026 ao Congresso, em abril, o Ministério do Planejamento previu 208 bilhões de reais para gastos discricionários. A maior parte do dinheiro, porém, já tem destinação certa: o pagamento de emendas parlamentares e a complementação dos desembolsos mínimos com saúde e educação fixados pela Constituição. Essas despesas “carimbadas” consumirão 125 bilhões. Em 2027, o governo antevê um cenário ainda pior. De um lado, o aumento dos gastos obrigatórios reduzirá a verba para outros fins. Ao mesmo tempo, as emendas parlamentares e os gastos com saúde e educação consumirão 133 bilhões. Faltarão 11 bilhões apenas para cobrir essas despesas — sem contar o dinheiro necessário para todo o resto. Em outras palavras: a máquina federal pode parar em dois anos.

O peso que as emendas parlamentares ganharam no Orçamento não a despercebido. Somente neste ano, elas somarão 50 bilhões de reais. Muita gente espera que o Congresso assuma sua parcela de responsabilidade pelo rombo nas contas e modere o apetite. Enquanto surgiam os primeiros sinais de recuo no apoio ao pacote de Haddad, o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, relator do processo sobre emendas parlamentares, deu um prazo de dez dias para o Congresso explicar a criação de um “novo Orçamento Secreto no Ministério da Saúde”. Para grande parte dos congressistas, não foi mera coincidência a ordem de Dino no momento de ime entre Executivo e Legislativo sobre o ajuste fiscal. “O Congresso quer corte de gastos, mas, com as emendas, isso é quase impossível”, afirma Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA.
Caberia a Lula resolver o ime, assumindo o ônus político de propor as impopulares, mas necessárias, medidas que evitem o desastre fiscal que já se avista, como uma revisão de programas assistenciais, uma reforma istrativa e uma nova reforma da Previdência. Somente assim poderá cobrar que os demais poderes cortem gastos. “Se o presidente não liderar esse processo, é muito difícil que o Congresso o faça”, diz o economista Samuel Pessôa, referindo-se às propostas de corte de gastos engavetadas no Parlamento. “Mas Lula lavou as mãos.” Considerando-se a fase de impopularidade do governo e os planos do petista para a reeleição, poucos apostam que o bom senso vai prevalecer para evitar a bomba fiscal. O país inteiro espera que essa previsão pessimista não se concretize, pois a conta dessa omissão será paga por todos os brasileiros.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948